Sobre a tradução
Este trabalho tem um gosto especial. É a primeira vez que nos debruçamos sobre uma tradução que não tem, de saída, o nosso olhar de produtores de teatro. Antes desta empreitada, sempre que nos aproximávamos de um texto para tradução, era para montá-lo. Foi assim com Dea Loher, Bernard-Marie Koltès e Fernando Arrabal, entre outros.
Mas este “gosto especial” foi porque o convite chegou através da gestora e curadora Márcia Dias, idealizadora do projeto “Internacionalização da Dramaturgia” e uma das diretoras do Tempo Festival; hoje, um dos mais importantes festivais de teatro do Brasil.
Em nossos trabalhos no Satyros, nossa companhia de teatro, a ideia de ações em redes sempre foi priorizada. Tem sido assim há anos. No Satyros, já atuamos em quase 40 países. Da África, Europa, Ásia e América do Sul, Central e do Norte. E, curioso também nesta travessia, é que os nossos trajetos sempre foram cumpridos em coletivo, com elencos muito grandes. A título de curiosidade, nossa última rota teve como ponto final a China, com o espetáculo “Cabaret Fucô”, em 2019, com um elenco de 19 atores, mais equipe técnica. Como podem ver, gostamos de grandes desafios. E de gente, sobretudo.
No entanto, quando o convite chegou, tínhamos muitos problemas de agenda. E, se não gostássemos tanto de intersecções — e de desafios e de provocações e de instigações —, teríamos declinado. Mas a possibilidade de estarmos juntos nessa rede tão pujante, na terceira edição de um projeto tão potente, falou mais alto e não podíamos ficar de fora.
Foi então que surgiu a parte mais incitante da história: o projeto era sobre a dramaturgia holandesa e nossas traduções surgiriam a partir de textos que já haviam sido vertidos para outras línguas, uma vez que não tínhamos domínio do holandês. Se era dificuldade que procurávamos, pronto! Todos os motivos nos levaram a mergulhar, sem rede de proteção, nessa aventura, tão apaixonante quanto instigante.
Acertados, nos coube trabalhar com a obra da potente romancista, dramaturga e roteirista Esther Gerritsen e seu texto Planeet Alles, a partir da tradução alemã de Eva Maria Pieper. Planeta Tudo, como traduzimos, estreou em 2002 em Amsterdã, mas parece que foi escrita ontem, tamanha intencionalidade da autora em colorir um mundo que é, primeiro, tão distante, mas, ao mesmo tempo, tão próximo do nosso.
Em geral, um tradutor, em um processo que atua primeiro na alteridade, mostra o olhar de alguém distante para um outro que, por razões diversas, não pode compreender aquilo que lhe é mostrado. Como bom intermediador e em um ato parecido com a compaixão, ele poderá, dentre tantas maneiras, emprestar seu olhar para o seu interlocutor. Esta talvez seja a maior beleza do processo de elaboração da tradução de um texto.
Nesse em particular, tentamos criar outras vias que vão além dos procedimentos canônicos de “domesticação” — expediente de tradução que dissolve idiossincrasias culturais e linguísticas, adaptando o material totalmente à cultura de chegada, no caso, o português — ou de “estrangeirização” — que preserva, em certo sentido, as singularidades idiomáticas da cultura de partida. Buscamos, assim, uma tradução ativa, propositiva e crítica, pois o volume da cultura globalizada se expande em eixos que transcendem os planos lexical e sintático, e nosso papel, como tradutores, seria construir esses acessos.
Desse modo, também, o mundo pode ficar mais leve. Porque entendemos, nesse jogo de olhares que se cruzam, que nossas extensões, afinal, só são bonitas mesmo quando entendemos que não podemos possuir tudo o que ele nos é capaz de revelar apenas através de uma primeira impressão. Então a tradução ganha cores porque cada um, a partir da visão daquele que imprimiu uma das possibilidades, poderá ver, em dimensões cada vez mais expandidas, tudo o que faltava em seu mundo de primeiras impressões.
Uma tradução também pode ser definida como uma maneira de interpretar, compreender e até avaliar o mundo de um ou de vários pontos de vista. E, neste caso, de um texto teatral — e em um sentido também expandido —, representar além de impressões.
Porque a tradução como interpretação pode explicar o mundo, pode delimitar a história. Ou as histórias todas. E, desta forma, modificar tudo. Porque a história não é definitiva, ela pode — e deve! — ser dinâmica. E não apenas por conta de reparações que precisam, com urgência, ser repensadas. Pois traduzir também significa reconhecer escolhas de coisas que acreditamos e também de coisas que duvidamos ou que possam vir de elaborações a partir do que lemos, vimos, vivenciamos e — por que não? — ouvimos falar.
Para Freud, a memória é enganadora, e o sonho, a realização de desejo. Afinal, as memórias são seletivas e, se as emoções são atemporais, não é verdade que o passado explica o presente. Sem tradução, em processo de elaboração, não teremos elementos que poderão explicar a causa ou a verdade ou a inconsequência ou a mentira das coisas. Tudo é linguagem e o imaginário, que é também o lugar dos sonhos, pode ser visto no mundo que conseguimos ver, naquele que conseguimos traduzir.
A gente vê o mundo que nós somos porque é o mundo que experienciamos, o mundo que vivemos; e nossa realidade será sempre uma extensão do que conseguimos extrair do mundo. E isso, evidentemente, também interferirá na tradução que temos dos nossos próprios mundos.
Não respondemos diretamente para as nossas consciências, mas a partir das manifestações de nossos desejos e afetos. Por isso, e só por isso, cada tradução é única. Porque, também, não necessariamente o que é real para nós é real para você que nos lê agora.
Não é nada recente a investigação de que não existe uma versão da história que não mereça ser questionada. Também, é óbvio, que não existam explicações para as coisas que não mereçam inquirições. Afinal, tudo pode partir de uma ideia de tradução — ou de interpretação —, simplesmente. O presente não necessariamente terá sua elaboração no futuro revelada em uma única ideia de mundo. Por isso tradução também pode ser entendida como interpretação.
Delírios à parte, o que vale é o prazer que sentimos diante de uma experiência tão rica e especial. Com pessoas interessantes e curiosas, ávidas na construção de um mundo que não é simplesmente o de um mundo possível, nem tampouco habitável, na melhor acepção da palavra. Mas um mundo que poderá ser (re)construído a partir das nossas traduções e visões do que podemos apreender dele.
Em tempo: para este trabalho, contamos com o abraço generoso e carinhoso de uma amiga de anos, Mariângela Guimarães, que assumiu a visão de soslaio, aquela que é, ao mesmo tempo que instigante e desconfiada, fundamental para nos fazer ver além das perspectivas higiênicas e de possível ou rápida tradução.
Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez