Giovana Soar (Rio do Sul, 1969) é atriz, diretora e tradutora, e mestre em Teatro pela Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle. Como tradutora, integra o quadro da Maison Antoine Vitez, na França. Trabalhou como intérprete e assistente de diretores como Claude Regy, Georges Lavaudant, Sotigui Kouiaté, Benoît Lambert e Phia Ménard.

É diretora artística da Mostra Novos Repertórios, do Festival de Teatro de Curitiba, desde 2017, e diretora de produção da companhia brasileira de teatro, desde 2003. Na companhia brasileira, trabalhou como atriz, tradutora e assistente de direção em diversos espetáculos – e dirigiu A viagem (2009) e A cidade sem mar (2016) em parceria com Nadja Naira.

Em 2019, dirigiu a remontagem de Apenas o fim do mundo, em parceria com Luis Fernando Lubi Marques, para o grupo recifense Magiluth.

Para a terceira edição do Projeto de Internacionalização de Dramaturgias, Giovana Soar traduziu o texto No canal à esquerda, do autor holandês Alex van Warmerdam

No canal à esquerda - Bij het kanaal naar links
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No canal à esquerda - Bij het kanaal naar links

Num futuro distópico, a lei do mais forte rege as relações humanas. Em cena, assistimos aos conflitos entre os Meyerbeers e os Boumans, as duas últimas famílias brancas do mundo. Elas são inimigas mortais, carregando um ódio que transcende gerações e, no entanto, do qual ninguém conhece a origem. Em meio a esse cenário de desesperança e terror, Lucien Meyerbeer enfrenta o pai para pedir Angélica Bouman em casamento –evitando, assim, a extinção da raça branca.

Vencedor do TaalunieToneelschrijfprijs, importante prêmio holandês de dramaturgia, No canal à esquerda, de Alex van Warmerdam, reflete sobre o mundo em que queremos viver a partir de um texto tão duro e cruel quanto profundo e inspirador.

A publicação brasileira teve tradução de Giovana Soar e é um dos cinco títulos lançados pela Editora Cobogó em sua Coleção Dramaturgia Holandesa, que apresenta textos fundamentais do teatro contemporâneo holandês, traduzidos por importantes nomes do teatro brasileiro.

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Sobre a tradução
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Sobre a tradução

A tradução para mim é uma alegria. Uma satisfação. Não é um trabalho, é uma relação de amizade, de afeto com a palavra do outro. E, no meu caso, de profunda admiração. É um lugar de privilégio e labor. Um lugar muito gratificante.

O meu exercício da tradução de dramaturgia é guiado primeiro pela “língua” do autor, um trabalho que se concentra nos detalhes e num mergulho nas especificidades (linguísticas e estéticas). Em seguida vem o trabalho sobre a “palavra falada”. Muito diferente da escrita literária, o texto teatral é feito para ser dito. A língua falada tem suas idiossincrasias, e é preciso estar dentro da língua, com a língua, a favor dela. Acredito que o princípio da tradução seja o respeito e a capacidade de leitura/escuta dessa linguagem própria. Um exercício de transposição/transcriação o mais fiel possível.

A dramaturgia contemporânea tem me revelado, por meio de seus autores, um universo rico, profundo, às vezes novo e inusitado, mas certamente sempre inspirador e contundente. É um aprendizado constante e inesgotável.

O texto de Alex van Warmerdam nos coloca diante de uma realidade distópica, expõe relações familiares peculiares em um pseudofuturo. Futuro este que não queremos alcançar e certamente pessoas que não desejamos ser. Melhor ter essa realidade apenas na ficção. A leitura deste texto, assim como sua possível encenação, nos questiona em que mundo queremos viver, para onde vamos e como queremos livrar desse mundo os nossos sucessores. Um texto cruel, duro, direto, sem ironias. Um texto relevante nesse momento pós-pandêmico. Essa espécie de “previsão da vida futura” só nos coloca a certeza de que necessitamos seguir na arte.

Giovana Soar / @giovanasoar

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Você não repara em nada mesmo?
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Você não repara em nada mesmo?

lucien:
Você não repara em nada mesmo? Você tá sempre por aí, embaixo da ponte, na rua Nova, na fábrica abandonada, no túnel, no campo de hóquei. O que você vê por aí?

lu:
O que é que eu deveria ver?

lucien:
Embaixo da ponte vivem os congoleses, a fábrica está cheia dos romenos. A rua Nova, infestada de marroquinos, de chineses e egípcios. O túnel abriga 3 mil paquistaneses, o campo de hóquei virou um acampamento de albaneses. As dunas transbordam africanos. Deus sabe de onde eles saem. Todo o lado norte do canal é ocupado pelos chilenos, argentinos e colombianos. Os ciganos e os mongóis do lado sul. E a lista é ainda maior.

lu:
E daí? Isso é assim já faz tempo.

lucien:
Por acaso, acontece por acaso, de você cruzar com algum bran co, algum bom branco limpo?

lu:
Nunca.

lucien:
Você tá entendendo aonde eu quero chegar?

lu:
Não.

lucien:
Fora nós dois, eu só conheço mais quatro brancos.
lu:

Ah, é? Quem?

lucien:
A família Meyerbeer.

lu:
Os Meyerbeers? Brancos puros? Eles?

lucien:
Pergunta pro Makin o que é uma batata frita? Ele sabe o que é uma batata frita! Pergunta pro Arno como a gente faz uma almôndega perfeita, ele vai te dar a receita exata.

lu:
Aonde você quer chegar?

lucien:
É ridículo estar em guerra com os únicos brancos que nós conhecemos.

lu:
Você quer se aproximar dos Meyerbeers porque eles são bran cos?

lucien:
Sim.

lu:
Branco, preto, amarelo. O que isso muda pra mim? Eu odeio os Meyerbeers com todas as minhas forças. E é uma vergonha que você não queira odiá-los também, esses filhos da puta. O que você tem contra odiar? Contra um bom ódio puro e franco?

lucien:
Isso tudo é idiotice de um viciado em cola. Teu ódio é abstrato. Transmitido pela sua mãe. Uma mulher má e rancorosa.

lu:
Você tem sorte de eu ser velho e fraco, senão você já tinha levado uma.

lucien:
Tchau, e dá meu bom dia pros congoleses lá embaixo da ponte.

lu:
Espera, Lucien. Eu posso me adaptar.

lucien:
Você não é mais meu pai. Eu vou te jogar num lixão.

lu:
Eu venho amanhã. Eu venho amanhã.

lucien:
Do jeito que eu quero: silencioso e amável.

lu:
Prometo.

 

trecho de No canal à esquerda

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