Você não repara em nada mesmo?
lucien:
Você não repara em nada mesmo? Você tá sempre por aí, embaixo da ponte, na rua Nova, na fábrica abandonada, no túnel, no campo de hóquei. O que você vê por aí?
lu:
O que é que eu deveria ver?
lucien:
Embaixo da ponte vivem os congoleses, a fábrica está cheia dos romenos. A rua Nova, infestada de marroquinos, de chineses e egípcios. O túnel abriga 3 mil paquistaneses, o campo de hóquei virou um acampamento de albaneses. As dunas transbordam africanos. Deus sabe de onde eles saem. Todo o lado norte do canal é ocupado pelos chilenos, argentinos e colombianos. Os ciganos e os mongóis do lado sul. E a lista é ainda maior.
lu:
E daí? Isso é assim já faz tempo.
lucien:
Por acaso, acontece por acaso, de você cruzar com algum bran co, algum bom branco limpo?
lu:
Nunca.
lucien:
Você tá entendendo aonde eu quero chegar?
lu:
Não.
lucien:
Fora nós dois, eu só conheço mais quatro brancos.
lu:
Ah, é? Quem?
lucien:
A família Meyerbeer.
lu:
Os Meyerbeers? Brancos puros? Eles?
lucien:
Pergunta pro Makin o que é uma batata frita? Ele sabe o que é uma batata frita! Pergunta pro Arno como a gente faz uma almôndega perfeita, ele vai te dar a receita exata.
lu:
Aonde você quer chegar?
lucien:
É ridículo estar em guerra com os únicos brancos que nós conhecemos.
lu:
Você quer se aproximar dos Meyerbeers porque eles são bran cos?
lucien:
Sim.
lu:
Branco, preto, amarelo. O que isso muda pra mim? Eu odeio os Meyerbeers com todas as minhas forças. E é uma vergonha que você não queira odiá-los também, esses filhos da puta. O que você tem contra odiar? Contra um bom ódio puro e franco?
lucien:
Isso tudo é idiotice de um viciado em cola. Teu ódio é abstrato. Transmitido pela sua mãe. Uma mulher má e rancorosa.
lu:
Você tem sorte de eu ser velho e fraco, senão você já tinha levado uma.
lucien:
Tchau, e dá meu bom dia pros congoleses lá embaixo da ponte.
lu:
Espera, Lucien. Eu posso me adaptar.
lucien:
Você não é mais meu pai. Eu vou te jogar num lixão.
lu:
Eu venho amanhã. Eu venho amanhã.
lucien:
Do jeito que eu quero: silencioso e amável.
lu:
Prometo.
trecho de No canal à esquerda