Sobre a tradução
Talvez sejam os mistérios alguns dos regentes mais operantes do teatro. Digo isso porque talvez sejam essas as forças que esboçam os palcos em todos os espaços e tempos, antes mesmo de ser corpo, de nos parirmos corpo. Talvez sejam essas as pulsões — materiais e imateriais — que se agarram às palavras, que se estranham e/ou entranham as afetividades, e a partir daí, talvez, desse movimento vital que cutuca a existência, renasça a possibilidade de reescrituras e ressignificâncias da vida humana. Vida essa imergida e emergida a cada segundo de “ação” em uma cena. Seria possível traduzir essa força do teatro? Teria palavra, endereço ou ossatura? Que licença deveria eu pedir para me aproximar e assim poder traduzir o texto primoroso de Magne van den Berg? Que mistério teria ela acordado para escrever seu texto?
Como eu tão longe, em minhas condições e naturezas, poderia ouvir e sentir e ser e estar seu texto? Como de costume, o estômago do teatro nos digere por inteiro. Sem possibilidade de volta, a ida é uma condição da presença. A tradução me exigiu por inteiro, como o palco, como a cena, como os mistérios. Eu não vou fazer Medeia me lançou a um dos olhos mais bonitos que o teatro — generosamente e cruelmente — nos apreende: as memórias e, nelas, os encontros e nelas os encontros e reencontros irremediáveis.
Morei no Suriname aos 11 anos de idade, e foi lá que tive contato com o holandês. Não imaginaria que anos depois, aos 38 anos, teria a “tarefa” de traduzir uma peça originalmente escrita em holandês. Foi também no Suriname que aprendi inglês, o que me possibilitou essa jornada. O convite para integrar esse projeto chega na mesma semana que resgatei o contato com uma vizinha de lá, amiga de infância, quem inclusive me ensinou a entender o idioma na época. Coincidência ou sincronicidade, eu não sei se traduziria esse acontecimento dessa maneira. Seriam os mistérios da vida, cúmplices do teatro, me brincando aceitar esse desafio?
Eu nunca havia traduzido um texto antes. Não profissionalmente.
Aceito o desafio, em meio a pandemia, começo entontecido e assustado e termino a tradução com uma personagem me fazendo chorar. Muito.
de saudade do teatro
Por sentir o que ela sente
De também ruminar e desaguar
Frase a frase
Frase debaixo de frase
Desabafo a desabafo
Inconformidades
Desencontros
Sentidos
Utopias mentidas
Dúvidas
Não sei.
Difícil achar as palavras na vida, assim também no exercício da tradução. Porque nenhuma palavra é em vão, e nelas talvez habitem aldeias e mais aldeias de sentidos. Sentidos também são almas.
Termino a última página da tradução denunciado pelo texto. Sem esconderijo, máscara ou rota de fuga possível. Eu também estava em um banquinho na minha varanda. Eu também vi o dia se tornar noite, longe do teatro.
Traduzir foi como passar um pincel delicado em um fóssil, para tirar as camadas de areia e terra que estavam sobre ele, para encontrá-lo no que ele é, em seu tempo e espaço. A delicadeza desse varrer é também o entusiasmo de descobrir a sua história, suas memórias, e talvez o mundo dito por ele. Talvez ser memória junto ao fóssil.
O texto original é de uma beleza sem fim, e agradeço imensamente o encontro com ele. A minha intenção de aproximação, escuta e reverência, me fez também dizer: eu não vou fazer
Medeia. E assim como a personagem, eu também não fiz.
Em um período tão violento para o teatro e para a cultura no Brasil, onde o desvalor e a precarização dos aparelhos de cultura estão instituídos, e a solidão dos criadores em uma pandemia nos leva a um oceano de questionamentos, eu, sinceramente, apesar da distância cultural em relação ao texto original, me vi.
Vi muitos de nós brasileiros.
Nessa primeira tradução, eu talvez tenha sido mais corpo e pele que qualquer outra coisa. Fui desabafo e vômito como a personagem. Ruminei tudo.
Agradeço imensamente ao Guilherme Reis pela lembrança e o convite.
Agradeço imensamente a Márcia Dias, pelo convite, confiança e pelo presente na escolha do texto.
Agradeço a Mariângela Guimarães a imensidão e expertise que tanto me ensinou.
Agradeço a toda equipe o nosso encontro nesse projeto tão delicado e necessário.
Essa tradução foi um desafio delicioso. Foi um presente de vida. Na minha alma o teatro esteve em fésta. Acordado e convulsivo. Do jeito que eu o reconheço em mim.
Agradeço a oportunidade de traduzir esse texto tão belo, e colaborar para manter o teatro vivo, circulando no mundo, também pelas palavras tão vivas.
Jonathan Andrade